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quarta-feira, 26 de julho de 2023

Crítica: "Oppenheimer"

O diretor Christopher Nolan retorna às telonas com “Oppenheimer”, uma cinebiografia impactante e bombástica (com o perdão do trocadilho), filmada em IMAX, que chega para competir nos cinemas com a produção mais oposta possível: "Barbie – o filme".

A história de "Oppenheimer" é inspirada no livro biográfico de sucesso "Prometeu Americano: A História de J. Robert Oppenheimer", escrito por Kai Bird e Martin J. Sherwin,. Situado durante a Segunda Guerra Mundial, o filme segue a jornada de J. Robert Oppenheimer (interpretado por Cillian Murphy), um físico teórico da Universidade da Califórnia e diretor do Laboratório de Los Alamos durante o Projeto Manhattan - uma missão para conceber e construir as primeiras bombas atômicas. A trama se desenrola acompanhando o físico e um grupo de outros cientistas ao longo do processo de desenvolvimento da arma nuclear, que acabou por causar as trágicas consequências em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 1945. Além do ator que interpreta o protagonista, o elenco é composto também por Emily Blunt, Matt Damon, Robert Downey Jr., Florence Pugh, Gary Oldman, Jack Quaid, Gustaf Skarsgård, Rami Malek e Kenneth Branagh.

Cillian Murphy entrega um protagonista profundo e denso.

Não é surpresa que o próprio Nolan tenha escrito o roteiro, adaptando a obra literária, uma vez que o filme já começa definindo para o espectador que este acompanhará a história em duas linhas temporais, paralelamente, e o que as diferenciará será a fotografia, uma em preto e branco, outra colorida. Este recurso é praticamente o mesmo utilizado em um de seus primeiros filmes, “Amnésia”, que foi responsável inclusive por catapultar sua carreira para Hollywood. Mas é fato que Nolan sabe muito bem utilizar este artifício e conduzir a história, inclusive entrelaçando as linhas narrativas para que se completem. Há ainda a história dentro da história, no melhor estilo “A Origem”, mas, novamente, nada que deixe a narrativa confusa, o diretor já sabe usar seus recursos com maestria. No entanto, no ímpeto de sua empolgação com a história e na ânsia por não cortar sequências, Nolan acaba se alongando um pouco mais do que poderia no terceiro ato, mas nada que tire o brilho do filme.

Robert Downey Jr. rouba a cena em "Oppenheimer".

A construção da narrativa da carreira de J. Robert Oppenheimer, de mero estudante do doutorado, passando para professor e depois líder do projeto que construiria a primeira bomba atômica, é muito bem elaborada. Enquanto o primeiro ato do filme mostra mais da vida pregressa do protagonista e sua intimidade, Nolan consegue construir junto ao espectador sua própria bomba-relógio no segundo ato, estruturando uma tensão constante que vai aumentando junto com a dos personagens, conforme a bomba atômica fica mais perto de “ser criada”. Mesmo sabendo do final que os livros de História contam, é impossível não sentir o estresse e a angústia crescente que a narrativa vai formulando nos personagens e, consequentemente, no espectador.

O diretor Christopher Nolan dirige seu protagonista.

A fotografia do filme, feita pelo holandês Hoyte Van Hoytema, parceiro de Nolan em suas três últimas produções (“Tenet”, “Dunkirk” e “Interestelar”), segue o mesmo estilo de tons frios e cores escuras das parcerias pregressas com o diretor, e tem seu auge nas imagens em preto e branco, que trazem uma sensação de recorte histórico, além de serem muito bem utilizadas com a iluminação cênica.

As atuações completam a ótima qualidade do filme, com Cillian Murphy entregando todas as emoções do físico J. Robert Oppenheimer por meio de um olhar penetrante e perturbador, que tranpassa ao público seus temores, orgulhos e os pensamentos rápidos que inundam a mente do protagonista. Outras atuações marcantes que sempre roubam a cena quando aparecem ficam por conta de Robert Downey Jr., Emily Blunt e Florence Pugh.

No mais, "Oppenheimer" é uma excelente biografia que se aventura pela vida e pelo psicológico do homem que ajudou a criar a bomba atômica, provocando reflexões sobre ética e moral, em um filme muito bem executado e que deve levar uma boa leva de prêmios na próxima temporada.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Crítica: “Guardiões da Galáxia Vol. 3”

É desafiador fazer um filme de equipe, mas se tem alguém em Hollywood que já provou que é capaz de cumprir o desafio e torná-lo um sucesso foi o produtor e diretor James Gun, que assina o roteiro e a direção da trilogia “Guardiões da Galáxia” da Marvel e de “O Esquadrão Suicida” da rival, DC.

Em “Guardiões da Galáxia Vol. 3”, o grupo de desajustados está de volta com Peter Quill (Chris Pratt) tentando superar a perda de Gamora (Zoe Saldana), após os eventos de “Vingadores: Guerra Infinita”, e uma profunda viagem ao passado de Rocket (Bradley Cooper). Desta vez, os Guardiões partem em uma missão para salvar não só a galáxia, mas também a própria equipe.

Como a sinopse já entrega, o filme gira praticamente em torno do personagem de Bradley Cooper. Conhecemos todo o passado do guaxinim membro da equipe e sua história de vida não só é desvendada, como todo o desenvolvimento de Rocket iniciado no primeiro filme tem seu ciclo concluído e encerrado de uma maneira envolvente e eficiente. Cooper brilha na dublagem ao lado de Linda Cardellini, que aqui dubla a lontra Lylla (integrante do passado de Rocket), mas também já atuou no Universo Marvel como a esposa do Gavião Arqueiro.


Apesar do ótimo desempenho de Cris Pratt, que já está mais que à vontade no papel do Senhor das Estrelas, seu personagem tem menos espaço para evolução, apesar de mais tempo de tela. Ainda assim, Peter Quill consegue registrar um progresso em sua história pessoal durante a projeção. Já os demais personagens cumprem seus papéis no filme enquanto alívios cômicos, suportes e membros da equipe que realmente têm um carinho entre si, mas seus desenvolvimentos são resumidos a poucas frases soltas por entre os 180 minutos de filme, tendo pouquíssimo avanço nesse aspecto. Aliás, o roteiro parece se arrastar por alguns momentos e até se contradizer em relação à premissa do filme, ao seu final, mas não deixa de trazer emoção e passar a união que há entre a equipe.


A tão aguardada participação do Adam Warlock de Will Poulter (de “Midsommar - O Mal Não Espera a Noite”), anunciada na cena pós-créditos de “Guardiões da Galáxia Vol. 2”, fica a desejar. O personagem é um incômodo constante à trama principal, sem um propósito claro para contribuir com a história. A sensação é que não havia lugar para ele na narrativa que James Gun queria contar, mas o roteirista teve que incluir porque foi uma promessa do filme anterior, apagando totalmente o talento do jovem ator que poderia ter contribuído muito mais para a produção. O Alto Evolucionário de Chukwudi Iwuji (da série “Pacificador”) é mais um que entra para a galeria da Marvel de vilões caricatos, excêntricos e esquecíveis deste universo, dando espaço para os Guardiões brilharem.

O tempo de comédia de James Gun funciona muito bem em seus roteiros, sabendo encaixar as piadas em momentos de descontração, apesar de este ser o filme mais dramático da trilogia dos Guardiões da Galáxia. A fotografia de Henry Braham (de “O Esquadrão Suicida”) está bem inspirada e junto com a equipe de efeitos especiais (que trabalhou arduamente aqui, entregando cenários e personagens realistas e incríveis), traz cenas de encher os olhos, que vão do belíssimo ao grotesco. No entanto, são nas sequências de ação que a dupla Braham e Gun acertam a mão em cheio, com coreografias bem ensaiadas, algumas com tomadas mais longas e noções de espaço e localização bem definidos, sempre em sincronia com a música, trazendo um espetáculo visual para quem está assistindo. Aliás, as músicas para o setlist do filme são mais lentas, remetendo ao tom em geral, e já não são tão marcantes quanto seus antecessores, mas cumprem seus papeis da mesma forma como já acostumamos nesta trilogia, e com uma pitada de nostalgia no final que acalenta o coração.


No mais, “Guardiões da Galáxia Vol 3” é um filme que traz emoção, é uma boa diversão, promete deixar um “quentinho no coração” dos fãs após sair da sala de cinema, mostrando a conclusão da saga da trupe de defensores do universo de maneira satisfatória e o final da participação de James Gun na colaboração com a Marvel, uma vez que o diretor está partindo para o gerenciamento do universo cinematográfico da rival, a DC.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Crítica: “Elvis”


            Um turbilhão de cores em uma montagem frenética como um verdadeiro show do Elvis deve ser. Assim se apresenta esta cinebiografia, que é claramente um recorte particular sob um ponto de vista específico, ao longo de suas duas horas e quarenta minutos de projeção.

O filme “Elvis” acompanha algumas décadas na vida de Elvis Presley (interpretado por Austin Butler) e sua relação com seu empresário, o Coronel Tom Parker (vivido por Tom Hanks), enquanto alça voo para o sucesso e se torna o artista que o mundo inteiro conheceu como o rei do rock.

O maestro desta grande orquestra é Baz Luhrmann, que tem em seu currículo “O Grande Gatsby”, “Austrália”, “Romeu + Julieta” e o sucesso “Moulin Rouge – Amor em Vermelho”. Luhrmann assina como corroterista e diretor do longa “Elvis”, trazendo sequências frenéticas do começo ao fim, com cenas entrecortadas por letreiros explicativos (e bem chamativos) o tempo todo, o que já é uma característica visual marcante do diretor, mas que neste caso também funciona dentro do contexto de “showbiz” em que a história está envolta.

Tom Hanks interpreta o Coronel Tom Parker.

Elvis ao lado de B.B. King, interpretado
por Kelvin Harrison Jr.


Aliás, o narrador do filme é o Coronel Tom Parker, interpretado por um Tom Hanks canastrão e bem vilanesco, que chega a ser um pouco caricato. A percepção da vida de Elvis Presley pelos olhos do Coronel ajuda a retratar o artista como uma figura muito mais bondosa e inocente do que se sabe, sendo também o amparo ideal para o roteiro não se aprofundar tanto na vida íntima de Presley ou em questões polêmicas como toda a relação de Elvis com a população negra norte-americana, assunto esse que aparece mais na primeira metade do filme e se perde na segunda metade. Afinal, Hanks explica desde o começo que vai contar “a história da lenda”, e assim o filme o faz ao colocar o artista como uma estrela brilhante que foi vítima das pessoas a sua volta, e focando no estrelato dele. A própria decadência dos últimos anos de Elvis é pincelada de maneira apressada ao final da produção, sem muito desenvolvimento.

Mas isso não tira a empolgação e o brilhantismo de uma obra que integra perfeitamente a trilha realizada por Elliott Wheeler junto às cenas montadas pelos editores Jonathan Redmond e Matt Villa (mesma equipe fez “O Grande Gatsby” com Luhrmann), em uma sintonia incrível que dá o ritmo que o filme clama. Outro ponto interessante da trilha é como Wheeler incorpora as músicas de Presley na trama com releituras feitas por outros músicos e também intercaladas com outras canções.

Austin Butler como Elvis Presley.

Austin Butler apresenta uma atuação exímia ao encarnar o rei do rock, entregando bastante emoção e uma interpretação que deve angariar prêmios ao ator, uma vez que teve apoio de uma maquiagem muito bem feita, assim como a que transforma Hanks no Coronel. Outro ponto muito positivo da obra é a fotografia detalhista e bem trabalhada de Mandy Walker (que contribuiu com o diretor em “Austrália”), ambientando as cenas nos momentos de alegria ao trazer saturação máxima de cores que o próprio Elvis pede, e mesmo em momentos de angústia ao descolorir a cena para trazer o peso que aquele instante deve ter. Tudo isso com algumas recriações de movimentos de câmera dos anos 1950 e 1960 ao retratar os shows do rei do rock de maneira fidedigna aos registros da época.

No mais, “Elvis” é uma cinebiografia leve, bem elaborada tecnicamente, que deve trazer diversão e bastante do frenesi que envolvia as apresentações de Presley, colocando o artista em um pedestal, sem nunca se aprofundar demais em sua intimidade ou em questões sociais mais complexas. É um bom filme para viver um pouco da época de ouro do rei do rock.




terça-feira, 29 de outubro de 2019

Análise do filme 'Quero ser John Malkovich' por suas objetivas


Em uma das primeiras colaborações entre o diretor Spike Jonze e o cinematógrafo Lance Acord, o filme “Quero ser John Malkovich” contém uma imersão profunda no consciente e subconsciente da mente humana por meio do texto de Charlie Kaufman. Para materializar os diferentes pontos de vista mostrados no roteiro, Acord utilizou lentes diferentes que dessem percepções visualmente distintas ao espectador.

Durante grande parte do filme, o cinematógrafo utiliza objetivas normais, mostrando uma estrutura narrativa usual para o público e empregada na sua grande maioria dos filmes. Além disso, não é necessária grande profundidade de campo, uma vez que a ação está mais concentrada nos diálogos

Outro ponto que também chamou minha atenção é a constante “câmera na mão”, na qual os realizadores optam por não utilizar uma steady cam em momentos nos quais o filme passa uma certa tensão ou seu protagonista está nervoso e inseguro, fazendo também com que o espectador sinta os efeitos desses sentimentos.

Entretanto, quando os personagens “entram” no corpo de John Malkovich, Acord utiliza lentes grande-angulares, para diferenciar o olhar, que neste ponto utiliza a câmera subjetiva. Junto com a utilização desta lente, os realizadores também colocam uma máscara arredondada na tela, tampando por completo os cantos. Esse efeito ajuda a esconder as partes mais contrastantes da distorção promovida pela grande-angular nos cantos da tela, além de passar a ideia de uma visão por meio dos olhos de uma pessoa (pelo formato arredondado, assim como a íris e a pupila, e também auxilia na ideia de que a visão do ser humano consegue manter um foco em objetos pontuais.

Em um segundo momento, ao simular a lembrança de um chimpanzé, também com a câmera subjetiva, o diretor de fotografia utiliza novamente uma grande-angular, mas abre mão do recurso da máscara nos cantos, deixando bem mais evidente as distorções que acontecem. Acredito que a decisão também proporciona uma interpretação precisa ao espectador: enquanto o chimpanzé está recordando algo do seu próprio ponto de vista, no outro caso, em que a câmera subjetiva é usada para a visão de Malkovich, há outra pessoa dentro de sua consciência. Ou seja, a máscara arredondada nos cantos reforça a ideia de que é alguém observando de dentro de uma “caixa”, com apenas um “furo” para observar o exterior, como se essa “caixa” fosse a cabeça do ator e o “furo” fosse seus olhos. Essa sensação é corroborada pelo áudio abafado durante essas sequências, como se fosse a ressonância da voz dentro do crânio, fortalecendo a sensação do espectador estar dentro de uma caixa.

Desta forma, acredito que a utilização da lente grande-angular foi um ótimo recurso para a narrativa do filme “Quero ser John Malkovich”, não só concedendo à produção um estilo único, como também auxiliando na construção da narrativa e na percepção da história como um todo pelo público.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Crítica ‘Coringa’



        A nova empreitada do diretor Todd Phillips (de “Se beber, não case”) traz às telas do cinema o arqui-inimigo do Batman em uma total reinvenção e uma história inédita no cinema e nas HQs. “Coringa” chegou ao público após vencer o Leão de Ouro no Festival de Veneza, ganhar as graças dos críticos e também se envolver em polêmicas devido à temática violenta.

        A produção conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix, de “Ela”), que trabalha como palhaço para uma agência de talentos e, toda semana, precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus conhecidos problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal à gozação de três homens no metrô e uma série de acontecimentos iniciam um movimento popular contra a elite de Gotham City, da qual Thomas Wayne (Brett Cullen, de, veja só, “Batman: o cavaleiro das trevas ressurge”) é seu maior representante.

        O filme traz uma imersão profunda na mente do personagem. O público observa toda a história pela visão de Arthur, consequentemente encarando a sociedade de Gotham City por meio de seus olhos, criando uma empatia imediata com o personagem. É essa empatia que faz com que o espectador acompanhe e compreenda toda a trajetória que fez com que Fleck se torne o Coringa.  A produção é um grande estudo de personagem de 2h que culmina na criação do vilão em sua faceta mais sombria. O mergulho na consciência do de Fleck é tão intenso, que o roteiro brinca com a dualidade da realidade vivida por ele, um homem doente, em vários momentos. Nada é certo de fato, o que também representa um eco da versão das HQs do vilão, que não tem uma origem definida.

       A fotografia de Lawrence Sher (de “Godzilla II: rei dos monstros”) trabalha uma paleta de cores mais escuras, como o tema do filme pede, mesmo em momentos mais coloridos, e a trilha sonora instrumental de Hildur Guðnadóttir (de “Sicario: dia de soldado”) enche os ouvidos com a angústia do personagem, trazendo um casamento perfeito entre imagem e som. Inclusive, a Gotham City criada por Phillips e pelo cenografista Mark Friedberg (de "O espetacular Homem-Aranha 2 - A ameaça de Electro") se apresenta como um metrópole obscura e cada vez mais à beira do caos.

         Joaquin Phoenix está brilhante, trazendo várias facetas diferentes de um mesmo Coringa, todas colaborando para a evolução do personagem até encontrar seu verdadeiro “eu”. O ator transmite a ingenuidade de um homem otimista e todas as etapas de seu desenvolvimento, até chegar à ameaça de um vilão sanguinário. É possível notar sua entrega tanto emocional quanto fisicamente, uma vez que sua magreza contribui para o aspecto doentio do personagem. Uma das cenas iniciais mostra Arthur na janela de um ônibus olhando triste para uma cidade iluminada pelo sol. Já ao final da projeção, uma sequência muito parecida mostra um contraponto absoluto da cena citada antes, na qual podemos constatar toda a evolução que o personagem sofreu.

       A direção de Phillips é certeira ao dar liberdade a Phoenix para criar seu Coringa em frente à câmera, enquanto capta suas expressões e gestos em detalhes cruciais para o público sentir o personagem.

      “Coringa”, enfim, é um grande estudo de personagem que mostra uma versão violenta e sombria do vilão do Batman de forma completa, eficaz e muito bem desenvolvida.

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Resenha da cinematografia do filme 'Batman'


A produção de “Batman”, filme do diretor Tim Burton lançado em 1989, fez um grande mistério sobre todo o material até seu lançamento. A última referência audiovisual do público sobre o homem-morcego era a série dos anos 1960, que trazia elementos muito coloridos e um Batman nada soturno. Essa mudança na visão do herói começou nas histórias em quadrinhos, com o lançamento da graphic novel “O cavaleiro das trevas”, de Frank Miller, em 1985, que apresentava uma versão violenta e obscura do Batman. “O fenômeno deflagrado por Miller não só resgatou a imagem do Morcego como ajudou a levantar a moral dos quadrinhos como um todo. Várias graphic novels depois, os executivos dos estúdios já estavam de orelha em pé com os lucros em potencial de um longa-metragem sério do nosso herói”, recorda o artigo de José Aguiar para o portal de cultura pop Omelete. A adesão a esse tom mais sombrio determinou totalmente a fotografia de Roger Pratt para o filme de 1989.

A sequência inicial, que acompanha uma câmera percorrendo internamente as voltas do logotipo do herói, como se fosse um labirinto, já demonstra ao espectador o estilo de fotografia que Pratt e Burton trarão à produção, com muitas sombras e uma paleta mais escura de cores. A cidade de Gotham City é apresentada como um amontoado de prédios imensos, sufocantes e com pouca iluminação, trazendo excesso de sombras pelas ruas e pontos de luz intercalados com áreas escuras, aumentando a tensão de se andar pela cidade à noite. Durante o dia, nunca há a predominância de sol. O filme traz dias nublados e cinzentos sempre. Essa iluminação da cidade casa com o design de produção, arte e figurino, trazendo o tom sombrio a Gotham e a presença de poucas cores sem saturação. Essa visão é corroborada pelo crítico Lucas Rigaud, do portal CineCinemania. “Em matéria visual, não há o que deva ser criticado em ‘Batman’ (além do pescoço desconfortável de Michael Keaton), já que a produção é um verdadeiro espetáculo de design gráfico, rendendo a equipe de direção de arte um Oscar em 1990, além de ser também um verdadeiro triunfo em matéria de fotografia, ao utilizar pouca saturação, efeitos louváveis de sombra e iluminação.”, escreve.



Para a jornalista Isabel Teles, do Guia Folha, da Folha de S. Paulo, “em uma Gotham violenta, de prédios altos e escuros que remetem ao expressionismo alemão, Batman aparece para limpar as ruas, até que se depara com o arqui-inimigo Coringa.” A influência do expressionismo alemão é constante na assinatura de Tim Burton. O visual alongado e deformado dos prédios de Gotham e o excesso de sombras e contrastes em uma iluminação unida a uma paleta de cores, muitas vezes, quase monocromática, traz a forte herança do movimento que se iniciou no cinema mudo alemão dos anos 1920. Em texto e pesquisa de Katia Kreutz sobre o expressionismo alemão para o site da Academia Internacional de Cinema, a autora define algumas características dos filmes desse movimento. Segundo ela, “a maior parte deles era gravada em estúdios, onde se podia usar iluminação e ângulos de câmera deliberadamente exagerados e dramáticos, para enfatizar algum aspecto particular dos personagens – medo, horror, dor, etc.”, coincidindo diretamente com os recursos usados por Burton e Pratt para filmar o Batman de Michael Keaton. “Com o posicionamento de câmera sempre de baixo para cima, ajudado pela fotografia esfumaçada e sombras que o deixam sempre na penumbra (decisão da direção para esconder as limitações da roupa que jamais o deixava virar o pescoço e, claro, os 1,77m de altura do ator) Batman transmite seriedade e é assustador como sempre imaginamos o personagem”, define o crítico Rodrigo Rodrigues, do portal Maxiverso.


De fato, a cinematografia de Pratt participa muito da construção do Batman. A silhueta escura, marcante e emblemática do homem-morcego é sempre destacada por um fundo mais claro, contribuindo também para o mistério que ronda a personagem. Além dos ângulos baixos, nota-se o cuidado para iluminar sempre determinadas partes do uniforme, de acordo com a cena. Uma saliência moldada na “sobrancelha” da máscara auxilia no aspecto animalesco do vigilante, uma vez que projeta sombra sobre os olhos, que tornariam a personagem mais humana se visíveis. Por outro lado, em cenas nas quais a fotógrafa Vicky Vale (interpretada por Kim Basinger) está conhecendo justamente o aspecto humano do Batman, as sombras tomam conta do personagem quase que por completo, destacando pontos de luz somente em seus olhos. “O visual de Batman mistura elementos típicos do cinema noir, com uma criminalidade pulsante (bem similar a filmes de gangsteres da década de 1930, o filme inclusive parece passado em tal década), com o visual fantástico, de sombras e cenários de angulações distorcidas, do expressionismo do cinema alemão, vide F.W. Murnau” define o Pablo Bazarello, do site Cinema Pop.


O recurso de esconder os olhos sob as sombras é utilizado em alguns momentos por vilões também, que têm suas visões tampadas pelas sombras das abas de seus chapéus. Nesse caso, acredito que o recurso diminua a empatia com personagens que acabamos de conhecer, não nos importando tanto que eles morram, além de aumentar o tom de ameaça.

Toda a iluminação das cenas reflete características da dualidade da personagem principal. Ambientes iluminados servem de pano de fundo para Bruce Wayne enquanto o excesso de sombras e a escuridão dão abrigo ao Batman. O Coringa é a personagem que mais destoa do tom geral do filme, por trazer algumas cores de maior destaque (apesar de trabalhadas com um pouco menos de saturação também), mas fornecem um contraste interessante por ser o louco daquele universo, que realmente não se encaixa. A apresentação dele é cuidadosamente criada, com sua silhueta andando pelas sombras, quase em direção à câmera, e recitando seu discurso de apresentação, até que ele finalmente se apresenta como Coringa sob um ponto de luz que revela sua aparência final e, com a câmera em contra-plongé, torna-se um gigante ameaçador sobre sua presa.


Aliás, Pratt e Burton brincam muito com silhuetas durante a produção. O tempo todo mostrando sombras de personagens ou suas formas contra a luz, aumentando a tensão, o mistério e o perigo que envolvem o filme, quase como um thriller mais brando.


A sequência final com a luta entre Batman e Coringa no topo de uma catedral nada iluminada traz sua iluminação essencialmente oriunda de holofotes se movimentando ao fundo, que culminam em uma catarse de silhuetas e momentos típicos de suspense, tudo muito bem trabalhado e colaborando para a tensão do terceiro ato, até sua resolução.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Resenha da cinematografia do filme 'Aquarius'


O filme “Aquarius” me chamou bastante a atenção pela sua fotografia, feita a quatro mãos por Pedro Sotero e Fabrício Tadeu. A maneira como ela é cuidadosamente trabalhada e conversa com o espectador é incrível, sendo mais um elemento que ajuda a conduzir as emoções passadas pelo diretor Kleber Mendonça Filho. A produção, por si só, já considero como uma linda poesia cinematográfica e acredito que sua bela fotografia contribui muito para isso, a começar por vários planos abertos, que mostram a arquitetura do Recife, onde prédios antigos se tornam pequenos e ficam comprimidos entre arranha-céus modernos.

Na primeira parte do filme, que se passa nos anos 1970, há uma predominância de um filtro amarelado na fotografia, o que me remeteu a um estilo mais voltado à sépia, usada para indicar imagens mais antigas. Esse recurso é muito eficiente porque, não só estabelece que as primeiras sequências acontecem todas no passado, como traz um excesso de uma cor mais quente aos olhos do espectador, demonstrando momentos felizes, que transbordam amor e carinho entre as personagens, interagindo em família.

Nas cenas das lembranças de tia Lúcia, um excesso de branco e luzes fortes constroem o tom certo para o pensamento, destacando apenas as cores dos dois corpos em cena, que é o ponto central de sua lembrança.


Os takes das praias trazem ainda mais beleza ao filme (já no tempo presente da história), com um belo contraste entre cores vibrantes, do verde da vegetação ao amarelo da areia junto com o verde azulado do mar.

As cenas dentro do apartamento de Clara são sempre bem iluminadas, respeitando a direção da luz “natural” que entraria pelo imóvel. Os vários ângulos que mostram planos dentro e fora do apartamento no mesmo quadro, mostrando situações distintas acontecendo em ambos os ambientes, junto aos movimentos de câmera bem construídos, criando planos-sequências de dentro para fora do apartamento e vice-versa, também me conquistaram.

Uma cena em especial me chamou a atenção. Clara está beijando um homem dentro de um carro. Apesar de ele estar sentado no lado do motorista, a cena começa com ele totalmente inclinado a beijando, ambos no lado do assento do passageiro, onde uma luz vermelha no fundo predomina, evocando paixão e calor. Ao descobrir que a personagem de Sônia Braga fez uma cirurgia de mama e perder o interesse nela, o homem volta à posição do banco do motorista, ficando na penumbra. Essa falta de iluminação nele reforça que ele perdeu o interesse na personagem e não compartilha mais o calor e paixão dela, que ficou somente por detrás do banco do passageiro.

As sequências dentro do apartamento de Clara sempre trazem cores quentes, bem iluminadas, demonstrando conforto e acalento em momentos mais intimistas e agradáveis, em total contraste às cores frias presentes nos corredores escuros e vazios.

Uma outra sequência também me chamou a atenção. A personagem vê, de dentro do seu apartamento e com a câmera acompanhando seu olhar, pessoas entrando no prédio. Conforme o espectador ouve o barulhos de um grupo subindo as escadas e iniciando uma festa no apartamento acima do pertencente a Clara, a câmera acompanha o “barulho” enquanto filma as paredes internas do apartamento onde está.

Em resumo, esses são alguns pontos que me chamaram muito a atenção e me fizeram apreciar a cinematografia cuidadosamente construída para o filme “Aquarius”.

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